A Questão da Ritalina
No mês de Consciencialização para a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção, não podemos deixar de relembrar este artigo do Dr Nuno Lobo Antunes de Junho de 2015.
“I am mad as hell and I can’t take it anymore”
Network é um dos filmes da minha infância. Um apresentador preste a ser despedido de uma estação de televisão, porque as suas audiências estão a decair, empolga uma sociedade com um último grito de protesto: “I am mad as hell, and I can’t take it anymore”. Há alturas em que desejava ter o poder de lançar esse grito e ser ouvido, ainda que a minha voz fosse abafada pelo coro daqueles que, não convivendo todos os dias com a angústia de famílias que genuinamente procuram uma ajuda para o drama de verem os seus filhos sofrerem de uma dificuldade que os aniquila, soltam “impressões” como se de factos se tratassem.
É a favor ou contra a medicação? É uma pergunta tola, embora quem a formule de boa fé, de tal não se aperceba. É contra ou a favor dos antibióticos? Fervorosamente contra se for para tratar uma constipação, decididamente a favor para salvar um doente com pneumonia. Esta divisão em campos opostos em relação ao tratamento de défice de atenção tornou-se uma questão cultural e política, como se a decisão de quem, quando, e com que medicação tratar uma doença, caísse na alçada da opinião pública, e não fosse responsabilidade profissional dos médicos que têm o dever e privilégio de tratar estas crianças. De hoje em diante vamos a votos sobre como tratar o cancro da mama.
É cíclico. De tempos a tempos a comunicação social debita desinformação sobre o químico que transforma as crianças em robôs, porque pais e professores são intolerantes quanto à vivacidade natural da infância, eles próprios vítimas de uma sociedade que lhes rouba o tempo e o lazer. Neste momento chega-se até a colocar em dúvida a existência de uma perturbação reconhecida por todas as organizações médicas independentes, e causa de sofrimento em milhares de crianças e adultos. Um conhecido pedopsiquiatra chegou ao cúmulo de afirmar recentemente que, em famílias tranquilas, raramente há crianças hiperactivas. Isso! Claro que a culpa é das famílias, tal como no passado a culpa do autismo era das mães “frigorífico”. É difícil perdoar, ainda que não saibam o que dizem.
Seria altura para se ouvir a voz dos milhares de famílias com crianças hiperactivas. Que se debrucem das janelas e gritem a sua indignação contra aqueles que julgam ser a PHDA uma moda, ou a consequência de pais egoístas do seu descanso. “We are mad as hell and we can not take it anymore” devia ser o seu grito contra aqueles que, por ignorância ou estupidez, transformam as vítimas em réus.
Seria altura das organizações profissionais independentes da Pediatria, Neurologia, Desenvolvimento, virem a terreiro e, com a serenidade que sustenta a ciência, afirmarem a verdade dos factos. É um imperativo moral ao qual se deviam sentir obrigados. Não tenho grande esperança.
Em alguns pontos estou de acordo com o alarido que por aí se faz: A perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA) deve ser feita após avaliação médica e psicológica cuidada, e a medicação é uma das intervenções ao nosso dispor e, em muitos casos, não dispensa apoio de outro tipo, nomeadamente psicológico. Começa porque apenas 1/3 das crianças com PHDA têm esta disfunção isoladamente. Os restantes têm outras dificuldades para as quais não existe resposta farmacológica. A medicação é um instrumento terapêutico para ser utilizado em cooperação com outras intervenções.
A partir daí lê-se e ouve-se um conjunto de falsidades e imprecisões. As consequências são dramáticas, pelo alarme que causam, em famílias cujas crianças tiram inequívoco benefício da medicação, enquanto privam outras desse auxílio, pelo receio que incutem. Qualquer medicamento tem efeitos acessórios: tudo o que tem o potencial de fazer bem, também pode fazer mal, mas essa possibilidade tem de ser posta em perspectiva, ou seja, é ponderada em razão das consequências da doença para a qual está indicada.
E quais são as consequências da PHDA?
Morte precoce por acidentes, dependência de drogas (2x), infracções à lei que leva a julgamento e prisão (2x), abandono escolar precoce (30%), gravidez não planeada na adolescência (20x), divórcio dos pais (3-5x), etc…etc…e não estamos a falar da dor, dificilmente mensurável, de milhares de crianças que não sentem o seu trabalho recompensado com os resultados escolares correspondentes ao esforço despendido. A prazo a depressão instala-se e a auto-estima sofre. Quanto tristeza e desânimo acompanha estas crianças de quem dizem ser preguiçosas ou, simplesmente, malcriadas.
É enquadrada neste pano-de-fundo que se deve colocar a questão dos efeitos acessórios da medicação que, além da diminuição do apetite (nem sempre um problema…), são no geral de pequena gravidade e facilmente contornáveis. É falso que o medicamento, em particular as formulações de longa duração, causem dependência, bem pelo contrário, a probabilidade de utilização de drogas reduz-se para metade nas crianças com PHDA que foram bem medicadas, o que não espanta se pensarmos que ela pode interromper o círculo vicioso do insucesso.
O alarme dos “media” em relação ao aumento da utilização da “Ritalina” não é justificado. Esse aumento quando traduzido em percentagem nada revela, porque se parte de valores muito baixos. É simples: fala-se muito da Ritalina porque é muito utilizada. E porque será muito utilizada? Porque é eficaz e tem poucos efeitos acessórios.
A procura dos medicamentos “naturais” é um sinal dos tempos. Se as pessoas soubessem que muitas vezes o conteúdo não corresponde ao anunciado, numa indústria que tem por detrás as mesmas empresas farmacêuticas dos “químicos”…
A incidência de PHDA nos EUA ronda os 5% (números conservadores), pelo que ainda que 1 em cada 100 crianças portuguesas tomassem medicação, isso significava que haveria, muito provavelmente, um número significativo que não estava diagnosticado. Tratar uma criança – qualquer que seja o medicamento – sem ponderação, é indesculpável, mas não medicar com “Ritalina” quem poderia ser ajudado por ela é um pecado igual.
Jornalismo parcial, feito de juízos a priori, com testemunhos desiguais na competência mas iguais no tempo de antena, é responsável pela penhora de fortunas de quem tem de se endividar para usar “tratamentos” para doenças incuráveis em Cuba, Filipinas ou algures na Alemanha. Ao mesmo tempo desacredita terapêuticas validadas por centenas de estudos e com dezenas de anos de experiência. Dado que não acredito na má intenção dos jornalistas, vejo apenas uma explicação: a falta de preparação científica da generalidade da população a que, naturalmente, essa classe profissional não escapa. O problema é que têm nas mãos uma arma cujas consequências não medem, com prejuízo para o público em geral e, no caso da “Ritalina”, para milhares de crianças que padecem de uma perturbação para a qual, felizmente, há medicação útil. Armas mortíferas em mãos impreparadas.
Terá passado pela cabeça de quem escreve sobre este problema que há défice de atenção sem hiperactividade? Que a dislexia é acompanhante frequente e que é difícil trabalhar nesse problema se as crianças não se conseguirem manter focadas durante as sessões de intervenção? Que a democratização do ensino, o prolongamento da escolaridade obrigatória e a igualdade de género ao aumentar (felizmente), o número de estudantes nas escolas contribui significativamente para o aumento do número de estudantes com necessidades educativas especiais, nomeadamente os que padecem de PHDA?
Detesto lugares comuns, outlets do pensamento, onde se compram a pronto, e com desconto, imitações da inteligência. Diz-se que devemos respeitar a opinião dos outros: mentira! Há imensas opiniões que não respeito, pois não têm qualquer valor. Ter opinião dá imenso trabalho, quem não teve esse trabalho que se cale.
Sou director de um centro de desenvolvimento. Este texto responsabiliza-me apenas a mim, e não a instituição que lidero, embora esteja seguro que todos partilham da minha frustração e da minha zanga, por uma razão simples: cuidar de crianças com perturbações do desenvolvimento é o nosso orgulho, e o nosso quotidiano.
Nuno Lobo Antunes