«Estrelas & Ouriços – Artigo opinião » “ Dia de escola ou uma família à beira de um ataque de nervos ”– Dra. Marisa Alves

Lá estava ela sentada ao lado da mãe, muito quieta, de mãos fechadas uma na outra, com a cabeça baixa a espreitar por cima dos óculos e com um magnífico laço verde no cabelo…

Há alguns anos teria ficado descrente “esta doçura assustadiça não pode ser a mesma que me descreveram como tendo batido na auxiliar e partido uma cadeira, enquanto a tentavam levar para a sala”… com os casos que fui conhecendo, direta ou indiretamente, deixei de me surpreender para passar a perceber que a discrepância que via, não mais era do que a medida da dificuldade em que aquela criança se encontrava.

A recusa escolar não é um diagnóstico, mas sim a faceta visível de dificuldades que fazem com que ir ou permanecer na escola seja um verdadeiro desafio. Isto significa que no conceito cabem muitas coisas diferentes, e por isso muitas histórias distintas – a da Maria, que ia sempre à escola mas que partia o coração dos pais pelo sofrimento que isso lhe causava, a do Tomás que se arrastava na rotina da manhã fugindo um pouco mais ao momento do portão, a do Simão que tinha febre, vómitos e diarreias durante a semana, mas que aos fins-de-semana estava sempre bem, a da nossa menina do laço que era sempre um doce mas que se transformava quando a tentavam levar para a sala… Também a narrativa por detrás de cada história pode ser muito diversa, desde o menino que não se quer afastar dos pais porque lhes pode acontecer alguma coisa – “e se têm um acidente de carro ou são raptados”, à menina que fica paralisada pela ansiedade de ser chamada ao quadro na sala de aula – “não vou saber responder, vão todos rir-se de mim, a professora vai ver que sou burra”, à adolescente que se angustia por imaginar como vai ser mais uma viagem de autocarro até à escola – “vou ficar nos lugares da frente, talvez junto ao motorista não se metam comigo”, ou ao jovem que antecipa mais um dia de aborrecimento e frustração a ouvir conteúdos que não compreende e que não lhe interessam – “que seca, mais um dia desperdiçado quando podia ficar em casa a fazer alguma coisa útil”.

É talvez esta multiplicidade de causas e apresentações que faz com que esta seja uma problemática extremamente democrática, surgindo em rapazes e raparigas, meios socioecónomicos mais e menos favorecidos, em alunos com excelentes competências académicas ou com grandes dificuldades de aprendizagem, desde o infantário até ao final da escolaridade obrigatória.

Ainda assim, quer seja pelo aumento das exigências do contexto – como quando as crianças passam a ter nove professores em vez de um, pelo reforço do evitamento à escola – como quando a criança se sente menos nervosa e aliviada nas férias de verão, pela existência de ganhos secundários ao ficar em casa – como quando se apercebe que nas aulas online pode ver televisão, jogar computador ou ouvir musica enquanto o professor fala, ou por todas estas razões em conjunto, sabemos que a recusa escolar é mais frequente em fases de transição – como quando terminam as férias, quando mudam de escola, quando fazem a passagem de um ciclo de aprendizagem para outro ou simplesmente quando voltam de um período longo de aulas em casa, como o que vivemos atualmente.

Entre a maior irritabilidade e agitação aos domingos à noite, as dificuldades em adormecer, os mal-estares pela manhã (dores de barriga, de cabeça, náuseas, tremores, tonturas, falta de ar), as birras e recusas incessantes, o cimentar do corpo na cama, o arrastar dos pés a cada passo dado, o choro que acompanha o percurso da escola, as perguntas e frases que se repetem sem cessar (“porque é que não posso ficar em casa”, “vais mesmo buscar-me às 15h30, e se te atrasas”, “eu não quero ir”), os braços que se atrelam ao banco do carro, a escalada pelo colo dos pais ou a corrida desesperada para fugir daquelas grades, não há como negar…são histórias difíceis com um impacto gigante na vida das crianças e das suas famílias, que na tentativa de conseguir ter sucesso no que parece ser tão simples para os outros, vêem a sua vida virada de pernas para o ar – porque chegam todos os dias atrasadas, porque recebem telefonemas diários da escola, porque ficam sem opções quando não conseguem que a entrada na escola aconteça… porque travam mais uma batalha diária a juntar a todas as outras que já fazem parte do nosso dia a dia.

Por todos estes motivos, é uma problemática que implica muitas vezes a procura de ajuda especializada, não só pela necessidade de compreender quais as dificuldades que estão na origem da recusa à escola e no desenvolvimento de competências que as permitam ultrapassar (regulação da ansiedade, desenvolvimento de competências socias, tolerância à frustração, entre outras), mas também pela necessidade de construir um plano de intervenção articulado, que dê resposta às necessidades da criança, e em que pais e escola têm de estar na mesma página, promovendo comportamentos de enfrentamento e evitando os que podem estar a manter a situação (como quando após a ausência da turma o seu regresso é assunto de sala de aula ou quando a criança beneficia de ganhos por não ir à escola, por exemplo, não fazer as tarefas escolares ou ter direito a mais tempo de brincadeiras).

Sendo motivo de grande desgaste e sofrimento para quem vive estas histórias na primeira pessoa, existem algumas ações que devem constar no guião para um final (que se espera) feliz:

Valide o que a criança ou jovem está a sentir, normalizando que todos nos sentimos assim em determinadas situações.

Frases como “Não te preocupes”, “Não há motivo para estares assim” ou “Deixa-te de fitas”, fazem com que a criança se sinta incompreendida ou ainda mais desajustada. Lembre-se que ela não escolheu sentir-se assim, e que o seu comportamento é uma tentativa ineficaz de tentar lidar com o que está a ser difícil. “Percebo que estás nervoso”, “Vejo que é difícil para ti” ou “Vou estar aqui para ti enquanto descobrimos como ultrapassar esta situação”, permitem dar espaço ao que a criança está a sentir, sem por em causa o que queremos alterar – o seu comportamento.

Evite expressar critica e zanga face a estas situações.

É normal que enquanto pais nos sintamos nervosos, frustrados, ou até zangados numa situação como esta, tome consciência das emoções que possa estar a sentir e dos impulsos que lhe podem trazer (gritar, acusar, chorar), mas tente manter o tom de voz tranquilo e a postura calma (mesmo que a fervilhar por dentro) enquanto ouve o que o seu filho pode ter para dizer, mas deixando claro que faltar à escola não é uma opção.

Evite a tranquilização constante e a resposta a perguntas ou cometários repetidos, ignorando-os.

Devemos estar sintonizados com as necessidades do nosso filho e responder às questões que nos colocam, Contudo quando estas são constantes, a nossa resposta funciona não só como reforço do comportamento da criança, mas também como forma da criança diminuir temporariamente o seu desconforto (o que funciona muito bem a curto prazo, mas dificulta o ultrapassar das dificuldades).

Tente ser concreto sobre o que precisa que a criança faça, ignorando o comportamento desadequado e reforçando o que se aproxime do desejado.

Ser claro e especifico, através de ordens curtas, diretas, e sempre que possível, mantendo o contacto visual, pode ser meio caminho andado para o sucesso. Para uma criança de 7 anos “temos de estar prontos para sair às 8h”, pode não incluir todas as tarefas que estão impecavelmente organizadas na sua cabeça. Além disso, ao repartir a rotina em vários momentos é mais fácil ir respondendo aos desafios que vão surgindo e criar também um maior número de situações que podem ser reforçadas (“Fiquei mesmo contente com a forma como hoje foste capaz de te vestir a horas do pequeno-almoço”). Ignorar consistentemente comportamentos desadequados menores, como reclamar, chorar ou rebolar-se no chão, vai fazer com que diminuam.

Encoraje a criança a fazer o que é importante e seja consistente.

O desconforto faz parte da nossa vivência enquanto seres humanos, por isso é importante que se crie espaço e tempo para que a criança aprenda a estar com as emoções e pensamentos que daí possam surgir. Prolongar indefinidamente a despedida no portão, deixar que fique um dia em casa ou ponderar o ensino doméstico, são ações que nascem muitas vezes desse lugar chamado amor, mas que reforçam a situação como insuportável ou a capacidade da criança para lidar com ela como insuficiente.

Uma boa regra de ouro, pode ser “não voltar para trás e continuar em frente”, não deixe que o seu filho faça menos, do que aquilo que já foi capaz de fazer, e estimule a que se aproxime cada vez mais do que é desconfortável, quer isto signifique avançar 2 metros (ficar na escola o dia inteiro) ou 2 centímetros (ficar no parque de estacionamento até que o desconforto seja tolerável).

Gostaria de dizer que com este guião o enredo facilmente se transforma no retrato de mais um dia normal na escola, mas pelas histórias que nos chegam ao gabinete, sei que nem sempre é assim. Sei também que quanto mais cedo for feito o pedido de ajuda – idealmente quando a criança ainda consegue ir à escola, ainda que já o faça com grande impacto e sofrimento na sua vida ou da família – mais fácil é ajudar as famílias a reescrever este capitulo, por isso não espere pelo twist inesperado no argumento ou pela possibilidade de tudo ser diferente na sequela – a ajuda especializada pode ser essencial para que esta seja mesmo uma história com final feliz.

Autora:

Dra. Marisa Alves, Psicóloga Clinica na Consulta de Ansiedade

Fonte: Estrelas&Ouriços