«Estrelas & Ouriços – Artigo opinião » “ OH NÃO… O OUTONO CHEGOU! ”– A equipa de Terapeutas Ocupacionais do PIN
Era uma vez uma menina chamada Alice. A Alice tem 7 anos, frequenta o 2.º ano e é a filha mais nova de uma fratria de 2. É uma menina meiga e muito faladora, gosta muito de dançar e de ver filmes. O pai e a mãe, estão ligados à indústria alimentar e estão com os cabelos em pé, porque sempre que muda a estação do ano, a Alice faz birras gigantes. Aconselhados pela professora, vieram realizar uma avaliação em Terapia Ocupacional.
A verdade é que, o Outono… aquela época do ano em que a temperatura diminui, a comida é servida mais quente e com pratos mais compostos, as crianças apanham folhas de diferentes cores, tamanhos e texturas e nas escolas se fazem trabalhos ilustrativos, é sem sombra de dúvidas, para a querida Alice um tormento.
Ao pensarmos em conjunto, começámos a perceber que a Alice desde cedo sempre foi muito sensível ao toque. Já no Jardim de Infância, com a chegada desta época, sempre que a educadora propunha uma atividade com colas e tintas em que se teria que sujar, a Alice ficava muito agitada. “Quero limpar as mãos, estão sujas!” dizia movimentando-se pela sala, limpando as mãos a tudo o que lhe aparecesse à frente.
“E sempre que tentávamos ir a uma festa ou quando se cantava os parabéns? Meu Deus… a Alice fugia para outra divisão e chorava inconsolável”, desabafou o pai. Certamente, para a pequena Alice, ver todas aquelas pessoas juntas e pensar que, provavelmente, alguém se iria lembrar de lhe dar um beijinho, um abraço, uma festinha ou tocar-lhe inesperadamente, era uma situação que a ela sim, lhe colocava os cabelos em pé, mas que ninguém compreendia…
Outra situação, não menos difícil, que a mãe fez questão de referir, foi o momento de pentear o cabelo ou quando chegava a altura de o cortar. “Era demais e surpreendente! A verdade é que a Alice nunca gostou que lhe tocassem na cabeça e embora eu quisesse muito que ela usasse ganchinhos e lacinhos ou atasse o cabelo com um elástico, para ela, isto sempre foi impensável”.
Os pais referem que a chegada do outono sempre foi uma altura particularmente difícil. Assim que a temperatura começa a diminuir, os pais começam a antecipar as birras de manhã para sair de casa. Muda a estação do ano e ela não quer mudar a roupa e muitas das vezes recusa-se a comer. Lá surgem os desafios extra em casa: “Não quero vestir calças, quero ir de calções!”, “Esta camisola pica-me os braços e estas meias fazem-me doer os pés!”, “Não vou comer. Esta comida sabe mal!”
Sempre que estava perante collants, galochas, luvas, camisolas, tintas, diferentes texturas, temperaturas e toques, a Alice manifestava alterações no comportamento, que não eram compreendidas pelos adultos em seu redor.
Estes comportamentos sempre foram evidentes desde que a Alice era mais nova, mas só depois de virem à avaliação em Terapia Ocupacional, é que conseguimos reconhecer e entender o motivo de todas aquelas “birras sem fim”. Afinal não eram apenas birras… a Alice apresenta no seu perfil sensorial, entre outras fragilidades, elevada reatividade sensorial – hipersensibilidade tátil – que a impede de participar e se envolver nas atividades do dia a dia como esperado.
A verdade é que todas as crianças aprendem através de experiências táteis, especialmente quando são mais pequenas. Tudo passa pela pele, pelo tato, pela boca. Os objetos são mapeados na boca e as características do ‘mundo’ são aprendidas através da pele. A moeda é redonda e fria… e a caneta também é fria… mas sabemos que é diferente da moeda. Os diversos recetores da pele, que estão em camadas diferentes e que são representados pelo nosso maior órgão, a pele, registam sensações diferentes e funcionam ininterruptamente ao longo da vida. Apesar de nem sempre nos apercebermos, o tato influencia muito o nosso desempenho ocupacional, por exemplo, uma criança que tem dificuldade em processar as informações táteis pode ser excessivamente sensível, escolhendo evitar experiências ditas “normais”. Quem nunca ficou desconcentrado durante uma reunião, porque havia um cabelo nas costas… apenas um cabelo que não permitia que o foco fosse mantido.
A nossa pele é a fronteira com o mundo e está sempre em ‘contacto com algo’. Tendo esta premissa em consideração, podemos imaginar o desconforto sentido pela Alice e os desafios que ela enfrenta diariamente em todas as suas ocupações. A sua hipersensibilidade é uma bússola sem norte.
As crianças hipersensíveis, entre outros desafios, apresentam como denominador comum e frequente; evitar sujar as mãos ou o rosto, resistir a tarefas de modelagem e por vezes recusam mesmo comer determinados alimentos. Podem também apresentar dificuldade com determinadas tarefas de higiene, mostrando um forte desconforto ou fazer birras durante a lavagem dos dentes, o banho, cortar o cabelo e as unhas. É frequente surgirem dificuldades em tolerar certos tipos de roupas.
No Outono, além das alterações climáticas, muitas situações se alteram do ponto de vista sensorial, como por exemplo as roupas que vestimos, os alimentos que comemos, os cheiros do mundo, as luzes, os ritmos…
Vamos pensar em coisas simples, que mudam tal como as estações do ano também mudam. A criança está ao colo da mãe, o toque com as roupas é diferente daquele que é por exemplo no Verão, quando usamos muito menos roupa e o contacto com a pele está muito presente. O facto de usarmos camisolas de manga comprida e casacos grossos e, por vezes, mais justos ao corpo, pode ser também um fator de grande desregulação para algumas crianças.
Esta é a altura do ano em que os alimentos são habitualmente mais quentes e a cor da comida também é muito diferente e menos colorida. A cozinha enche-se de cheiros fortes, os pratos são mais compostos e a comida é mais densa. As refeições podem ser verdadeiros campos de batalha.
A Alice é uma menina com um perfil hipersensível que, perante várias sensações de predomínio tátil, apresenta como resposta defesa e evitamento sensorial. Existem estratégias que poderão ser utilizadas de forma a compensar/regular o seu estado de reatividade.
Assim sendo, podemos ter de recorrer a uma reestruturação ou adaptação do ambiente (físico, social e ocupacional), proporcionando um ambiente co-regulador e a estratégias internas/do próprio corpo, com base no modelo de Integração Sensorial.
É de salientar que deve ser procurado um Terapeuta Ocupacional que após avaliação da criança, deverá em conjunto com cuidadores, equipa educativa e outros intervenientes (ex. Terapeuta da Fala) definir um plano de intervenção que contemple estratégias que vão de encontro às necessidades sensoriais específicas e que terão impacto na regulação dos níveis de atividade, atenção e respostas adaptativas.
A título de exemplo, no caso da Alice algumas estratégias seriam:
• Alimentação:
– Apresentar os alimentos separados ou num prato com divisórias de forma a incentivar a prova de alimentos que não se tocaram. Os sabores não estão misturados o que traz previsibilidade e segurança à rotina da alimentação;
– Minimizar as distrações visuais e auditivas. A refeição é um momento social, de partilha e interação. Desligue a televisão ou outras distrações durante as refeições;
– Evitar cheiros aversivos que possam vir de comida, priorizar alimentos mais inodoros;
• Vestir/despir
– Vestir roupas mais largas e de tecidos menos invasivos sensorialmente;
– Cortar as etiquetas e escolher roupa com o mínimo de costuras;
– Usar as meias do avesso, para evitar o contacto dos dedos dos pés com as costuras;
– Manter o ambiente físico a uma temperatura amena. Desta forma não é necessário que a criança vista peças de roupa sobrepostas;
• Outros
– Utilizar roupa de cama (cobertores) mais pesados;
– Usar luz suave, natural ou lâmpada de baixa intensidade;
– Evitar o toque leve uma vez que pode aumentar o estado de excitação (arousal/nível de alerta). Priorizar o toque firme e consistente por breves períodos de tempo, sem forçar;
– Utilizar pincel em atividades artísticas, evitando o toque direto com tintas.
A Alice, aqui retratada, é apenas uma das muitas crianças que conhecemos, qualquer semelhança com algum menino que conheçam não é coincidência, é realidade. Estes meninos passam entre os “pingos da chuva”. Só quando as reações comportamentais são demasiado evidentes é que alguém recomenda avaliação em equipa de desenvolvimento e nem sempre chegam à Terapia Ocupacional.
A Alice, poderia manifestar outras dificuldades, poderia ter outras queixas de base, sendo que o impacto na sua funcionalidade não seria de menor valor. Estas crianças, muitas das vezes são rotuladas e invalidadas… criando em si uma noção de competência e eficácia muito frustre.
Nós todos já fomos crianças, e que bom é podermos ter memórias agradáveis da infância. A Alice estava a criar um padrão disruptivo do comportamento, sempre que o Outono chegava. Provavelmente não teria memórias boas do pão por Deus, do Halloween…A abordagem centrada no utente, com vista à autonomia nas ocupações significativas, a par de um modelo que contempla os diversos ambientes e metodologias específicas de intervenção alicerçadas em Integração Sensorial, fazem de nós Terapeutas Ocupacionais os terapeutas de excelência para as Alices.
Por melhores memórias na infância, se conhecer uma Alice, encaminhe para Terapia Ocupacional.
As Terapeutas Ocupacionais:
Inês Margarida Caniça
Mafalda Correia
Sofia Pires
Susana Sousa