«Estrelas & Ouriços – Artigo opinião » “Perturbações alimentares…o silêncio que devemos ouvir ”– Dra. Andreia Leitão
As perturbações alimentares são um grupo de alterações do padrão de comportamento alimentar que podem evoluir para complicações muito graves. A anorexia nervosa, a bulimia nervosa, a perturbação de ingestão compulsiva, habitam o principal grupo de alterações alimentares, tendo critérios de diagnóstico bem definidos.
Não se resumem ao foco nos alimentos e no peso, esse pode ser apenas a ponta do icebergue. Mergulhar no universo destas perturbações é viajar através de várias dimensões de sintomas, de manifestações comportamentais, tais como isolamento social, alterações de humor, ansiedade, obsessões e compulsões, entre outras, que nos conduzem a possíveis co morbilidades.
Uma nuvem de mitos envolve esta temática, sendo fundamental clarificar – as perturbações alimentares não atingem somente o género feminino, não ocorrem só na adolescência, não são um estilo de vida ou uma escolha, não são causadas pelos pais. Durante décadas a teoria de culpabilização do estilo parental imperou, sublinhando a evidência que a causa das perturbações alimentares é multifatorial e por isso complexa, implicando-se fatores genéticos e ambientais.
A literatura realça um fator ambiental como potencial trigger, ou seja, fator precipitante – as redes sociais. As redes sociais têm inúmeras vantagens e benefícios, no entanto, apresentam uma faceta que pode revelar-se menos positiva -a idealização de beleza. As redes sociais são veículos de estereótipos de beleza, de beleza idealizada, com filtros. A internalização desses ideais pode despoletar uma insatisfação com a autoimagem em idades críticas de consolidação da mesma. E essa insatisfação gera uma cadeia de eventos, com a procura do atingimento do ideal, com a busca de “likes”, culminando na alteração do padrão alimentar e foco no peso, alimentação, exercício físico.
Sublinha-se que esta cadeia de eventos é muito silenciosa e não imediatamente visível. A instalação das perturbações alimentares é, em geral, muito silenciosa, pelo que deveremos estar alerta. A nossa atitude deverá ser uma atitude de rastreio, não descurando sinais de alarme que se instalam precocemente de forma subtil, muito discreta. O nosso grau de vigilância deve ser máximo. A deteção de sinais precoces é o fio condutor que leva à procura atempada de ajuda especializada.
Os primeiros sinais revelam-se geralmente muito ténues e até se mascaram como um estilo de vida saudável. Gradualmente há um aumento excessivo do tempo dedicado ao exercício físico, a escolha de alimentos menos calóricos, restrição da ingestão de alimentos, a eliminação de alguns grupos alimentares como os hidratos de carbono, o salto de refeições, episódios de ingestão compulsiva rápida de uma elevada quantidade de alimentos, isolamento durante as refeições, alterações de humor, preocupação em pesar-se frequentemente.
As consultas de vigilância da saúde infantil e juvenil são janelas de tempo e oportunidade ótimas para rastrear sinais que conduzam a uma perturbação alimentar ou pelo menos a fatores de risco, preditivos de evolução para perturbação alimentar, que possam ser alvo de intervenção. Os comportamentos alimentares desajustados de início precoce, quer pela restrição, seletividade ou ingestão excessiva, são fatores de risco de uma potencial perturbação alimentar.
O dia a dia das famílias de crianças e adolescentes com perturbações alimentares é preenchido pela preocupação, pela procura de uma bússola, pela necessidade de respostas. A abordagem deve ser multidisciplinar (pediatria de neurodesenvolvimento, psiquiatria, psicologia, nutrição) e deve ter em conta o perfil individual da criança ou adolescente, bem como o envolvimento da família. A orientação médica, a psicoeducação alimentar, a intervenção cognitivo-comportamental, a terapia baseada na família são parte integrante da rede de orientação e suporte a estas famílias e adolescentes. Note-se que a adesão à intervenção pode ser baixa, pelo que a motivação do adolescente é fundamental.
As perturbações alimentares ainda são sub diagnosticadas, o que significa que há casos por identificar. O diagnóstico tardio agrava o prognóstico. Evoca-se a anorexia nervosa que é uma perturbação alimentar com mortalidade associada significativa.
É urgente adotarmos uma atitude de rastreio de perturbações alimentares e implementarmos medidas preventivas que impeçam a evolução de padrões alimentares desviantes para uma perturbação alimentar franca. Como disse uma adolescente – “ eu apenas procuro o melhor de mim e só consigo fazer isso desta maneira” , a procura de um ideal é um caminho tortuoso, com muitos riscos, físicos, psíquicos, emocionais, sociais. que acelera numa espiral de instabilidade.
Cabe-nos a todos sensibilizar para um tema tão relevante, dar voz a este silêncio, abrir a avenida da deteção precoce e da melhoria do prognóstico.
Autora:
Dra. Andreia Leitão, Médica Pediatra de Neurodesenvolvimento e Diretora Clínica do PIN Porto
Fonte: Estrelas&Ouriços