“Lost in translation”: conflitos entre pais e filhos – Um texto da psicóloga clínica Marisa Alves
Já está mais de 10 minutos atrasado… tinha-lhe dito como era difícil parar aqui mas nem assim. Finalmente! Pelo menos vem em passo apressado… nem sequer tentou justificar-se… lembrei-o pela milionésima vez da importância de cumprirmos os horários. Este silêncio deixa-me com os nervos… está a amuar, se calhar exagerei no sermão…já lhe passa, combinámos passar pela livraria para escolher os livros para as férias…se soubesse tinha ido direto para casa, a mesma cara fechada e só escolheu um livro…ai é assim que queres! Não me vou dominar pela culpa, depois não me venha pedir mais visitas à livraria… mais vale ser a mãe a chamar-lhe a atenção agora do que o chefe daqui a uns anos.
Em casa nem sequer ajudou com as compras, directamente ao armário para comer bolachas…são quase horas de almoço, este miúdo só pode ter tirado o dia para me chatear. Arrumo as compras já irritada e digo-lhe que vou fazer um telefonema importante… vai custar não renovar o contrato a mais uma pessoa… mas que algazarra é esta!? Fui dar com ele e com o cão, em latidos alucinantes…mas onde é que eu errei com este miúdo, não tem respeito nenhum, não quer saber de nada nem ninguém…se não aprendeu a bem, vai aprender a mal.
Já estou atrasado, bolas ela vai-se passar… e ainda por cima é sempre difícil parar ali…o melhor é despachar-me e nem sequer dizer nada, senão vai falar outra vez das mil quinhentas coisas que fiz mal esta semana… Sei que não ando muito atinado, mas são muitas cenas ao mesmo tempo… a Luísa, a conversa com o professor João… fogo na minha cabeça o final do 11º ano era bem diferente… pelo menos agora vamos à livraria talvez consiga esquecer isto, vou comprar os livros para as férias, isso vai deixar-me mais animado… Bolas estou mesmo em dia não, dos livros que escolhi só tem um… podia deixar encomendado mas a mãe está com ar de poucos amigos, ainda deve estar chateada com o atraso, é melhor nem dizer nada…Também já estou com uma dor de barriga…com isto tudo nem fui comer no intervalo, umas bolachinhas antes de arrumar e vou ter com o Caramelo…é engraçado como isso me deixa sempre mais calmo, deve ser aquela cena da oxitocina que o prof falou…sou mesmo estupido, a mãe continua chateada de morte…espero que lhe passe depressa, já me sinto uma porcaria com tudo o que anda a acontecer, ficarmos chateados era só o que me faltava…calma, calma Caramelo, bem sei que não te ligo há alguns dias, mas não é preciso ficar nesse “excitex”… xiuuu, a mãe está a fazer cenas de trabalho…já fui…
As histórias de pais e filhos que não se entendem e me chegam à consulta são quase sempre assim, atrevo-me mesmo a dizer que a maioria das nossas histórias de conflito são assim, só não costumamos ter acesso directo aos bastidores.
Por isso vamos reagindo, de forma muitas vezes automática, sem qualquer pausa, ensaio ou espaço para esclarecimentos…pensando nisso, é verdadeiramente espantoso que grande parte das interacções com os nossos filhos sejam pautadas por entendimento e tranquilidade.
Isto acontece porque grande parte dos seres humanos tem a capacidade de se colocar nos pés do outro e procurar compreendê-lo, dirigida por uma motivação genuína de se ligar e estabelecer relações gratificantes e seguras. Mas a complexidade do espaço entre a minha realidade (os meus pensamentos, emoções e sensações) e a realidade do outro (os seus pensamentos, emoções e sensações) leva a desencontros difíceis, até quando estamos no mesmo barco e a navegar na mesma direcção, ou seja, mesmo quando queremos a mesma coisa.
Não existem fórmulas mágicas, guiões ou cartas náuticas que se possam consultar mas a capacidade de reconhecer o que estou a pensar e sentir (sem reagir), comunicar eficazmente o que compreendo e necessito e agir de acordo com o que é verdadeiramente importante para mim, pode fazer-nos chegar a um final feliz… ou, pelo menos, a bom porto.
Pense na nossa história. Melhor ainda, pense numa daquelas situações difíceis com seu filho e tente olhar para ela como mero espectador, como se estivesse a ver a cena de um filme ou a ler o capítulo de um livro.
Enquanto tudo acontece, que pensamentos lhe surgiram?
Que emoções aparecem?
Que sensações consegue descrever no seu corpo?
Se pudesse escolher a sua direcção, sem reagir a tudo o que está a acontecer dentro de si, o que escolheria fazer nesse momento?
Olhando para trás (ou apenas alguns segundos depois da discussão) percebemos que muitas vezes gostaríamos de ter feito as coisas de outra forma, que respondemos não ao que era importante para nós, mas sim à forma como isso nos fez sentir… tome consciência disso e da sua universalidade.
Todos falhamos, todos nos deixamos levar pelas nossas emoções, todos nos esquecemos do que é mais importante, todos nos comportamos de forma contrária ao que gostaríamos… e todos podemos encontrar nesses momentos a possibilidade de ficar um passo mais próximo do pai ou mãe que queremos ser.
Também podemos descobrir que respondemos de acordo com o que acreditamos ser mais importante, mas não da forma mais eficaz, falhando na forma de o comunicar:
“Não quero saber se os teus amigos te acham totó ou meio totó. Já decidi e está decidido, só vais ter telemóvel aos 12”.
Independentemente dos nossos valores enquanto pais e das decisões que tomamos, é importante que os nossos filhos sintam que existe um espaço para os seus pensamentos, emoções, vontades…para as suas necessidades. Ainda que a resposta seja um redondo NÃO, é importante que seja um NÃO cheio de “eu ouvi-te…entendo o que estás a pensar e a sentir…é legítimo…é válido”.
Nas situações de conflito quando os pais se focam mais nas motivações e intenções dos seus filhos, do que nas próprias, ficam mais próximos de se envolver em comportamentos que lhes permitam dar suporte, sem negarem o que consideram essencial para a sua educação.
De qualquer forma deixe-me já garantir que também aqui vai falhar…quantas vezes já dei por mim a dizer a frase certa, mas com o tom de quem diz o contrário ou a manter a velocidade do discurso e a expressão tranquila enquanto digo tudo ao lado… Vou…
Vamos continuar a falhar, porque faz parte de sermos humanos e do processo de aprendizagem, bem como todos os pensamentos detestáveis, emoções desagradáveis e impulsos bárbaros que podemos ter enquanto pais…não é, nem nunca será sobre sermos os pais perfeitos, mas sim sobre tomarmos consciência dos pais que queremos ser, da forma como os nossos pensamentos, emoções e sensações estão sempre presentes no educação dos nossos filhos e sobre o que escolhemos fazer, apesar de tudo isso…ou melhor, o que escolhemos fazer abraçando tudo isso.
Marisa Alves – Psicóloga Clinica na Consulta de Ansiedade
Fonte: Pais e Filhos