«Observador – Artigo opinião» “Internet: do “tempo a mais” à adição” João Nuno Faria, Psicólogo Clínico do PIN

Videojogos, redes sociais, influencers, ciberbullying… A Internet mudou-nos a vida para melhor mas trouxe novos desafios (e ameaças). Quando é que o tempo em frente ao écran se torna um problema?

Se eu tivesse nascido há 13 anos, hoje estaria provavelmente em maus lençóis. Ao longo de toda a minha vida senti-me fascinado pela mecânica dos videojogos e pelas horas de entretenimento que estes proporcionavam, a mim e aos meus amigos. Mas nasci há 43 anos, o que significa que a experiência era bastante diferente da atual. Apesar de já serem uma realidade em casa nessa altura, os gráficos, os sons, os comandos e a experiência restrita aos nossos amigos locais provavelmente protegeram-me de desenvolver uma relação complicada com os videojogos.

Estão claramente documentadas as vantagens da Internet nos mais diversificados contextos, quer falemos de aplicações para casa, facilitação da realidade académica/laboral ou até no campo das relações, com o advento das redes sociais e aplicações de encontros. E estão já devidamente comprovadas cientificamente as vantagens que a utilização da Internet tem para o nosso desenvolvimento cognitivo, social e emocional.

Porém, tal como acontece com tantas experiências humanas, a utilização da Internet pode ser representada por um espectro de interações que vão desde uma utilização saudável que traz utilidade ao dia-a-dia até uma utilização desadequada cujas finalidades prejudicam o indivíduo.

Até à data, existem duas perturbações associadas à utilização da Internet, sendo ambas problemas de adição: jogo a dinheiro e videojogo. A temática do jogo a dinheiro tem já uma extensa tradição clínica, tendo sido foco de investigação durante vários anos.

No caso dos videojogos, cuja perturbação é denominada de (Internet) Gaming Disorder,  apesar de ser mais recente no campo científico, estão já identificados os impactos e os respetivos critérios a que se deve estar atento:

1) interesse exclusivo e obsessivo pelo tema;

2) reação emocional forte quando se é impedido de estar envolvido num videojogo;

3) necessidade de cada vez mais tempo de jogo para se sentir satisfeito;

4) incapacidade de reduzir o comportamento;

5) perda de outros interesses;

6) minimização das consequências e manutenção do comportamento de risco;

7) mentira em relação ao tempo de jogo;

8) fuga a emoções difíceis de processar no mundo offline;

9) aumento de conflito com pessoas significativas.

Se cinco destes nove critérios estiverem presentes ao longo de um ano, o indivíduo cumpre critérios de adição aos videojogos.

Há 12 anos que sigo situações ligadas à adição à Internet. O assunto tornou-se alvo de investigação/especialização para mim porque, além de ser um tema que me acompanhou, pro interesse pessoal, ao longo de toda a vida, foi-me sugerido pelo neuropediatra Nuno Lobo Antunes que investisse nesta área, sendo um campo clínico ainda muito parco na altura e muito promissor.

Nos últimos anos, sobretudo após a pandemia, verificou-se um aumento significativo dos diagnósticos ligados à adição aos videojogos, o que levou ao surgimento de novos casos todas as semanas – situação que se mantém atualmente. O tema é cada vez mais conhecido e os exemplos mais extremados. Acompanhei um caso de um jovem que ficou 23 horas seguidas em frente a um écran a jogar um videojogo, sem pausas para dormir, comer, beber ou ir à casa de banho.

Os pais vão chegando preocupados. Sentem que muitas vezes já esgotaram todas as estratégias de que têm conhecimento e descrevem situações desesperadas de não conseguirem que os filhos sejam assíduos em termos escolares (absentismos muito prolongados) ou de verem as notas em queda acentuada, colocando os alunos em risco de retenção.

Há ainda outras experiências que, apesar de não constarem nos manuais de saúde mental, são também sentidas como fortemente impactantes – como as redes sociais, que criam cada vez mais preocupações a educadores pelo potencial impacto negativo na vida das crianças e dos jovens. Com alguma frequência ouve-se a expressão “está viciado nas redes sociais”, embora não estejam ainda definidos os critérios para se considerar um uso dessas plataformas de forma aditiva ou prejudicial.

Ainda assim, já existe uma forte linha de investigação que tenta evidenciar os efeitos dessa utilização das redes. Existe, por exemplo, uma linha de pensamento que demonstra a oscilação entre o impacto positivo e negativo que um influencer pode ter no comportamento de alguém que o siga e o valoriza, podendo variar entre uma postura de inspiração e consequente repetição do comportamento ou uma valência de inveja, com o efeito oposto.

Outra área problemática associada ao uso da Internet é o cyberbullying, que se pode manifestar sob diferentes formas, qualquer delas com implicações muito significativas para quem é o alvo. Apesar de, em termos de investigação, este fenómeno ter a sua origem no bullying praticado em regime presencial, o modo virtual tem vindo a ganhar visibilidade nos últimos tempos, sobretudo pelo facto de cada vez mais indivíduos terem em seu poder dispositivos que se podem conectar à internet (computadores, consolas, tablets e smartphones), transformando-se em potenciais vítimas e agressores.

A utilização das redes sociais por parte dos jovens – bem como o advento de algumas que trazem outras experiências de interação e reinventam novas formas de, potencialmente, serem realizadas ações que possam prejudicar terceiros – é uma preocupação constante de pais e professores. Das mensagens de ódio (flaming) à proliferação de desafios que colocam em perigo as vidas de quem os executa, são vários os motivos de inquietação.

Apesar de a frequência ser menor do que os casos de adição aos videojogos, noto esta preocupação com as redes sociais por parte dos pais (sobretudo nas ações de formação) e, claro, também encontro disto nas consultas.

Há cerca de dez anos acompanhei um jovem com adição a videojogos que era vítima frequente de bullying no contexto escolar. Um jovem magro e pálido, pouco investido e com indicadores de fraca higiene, sem relações de amizade importantes na escola, logo bastante isolado. Como forma de vingança, este jovem vítima de bullying transformou-se em agressor de cyberbullying contra aqueles que lhe provocavam dano. Como, ingenuamente, não escondeu a identidade, acabou por ser identificado pelos colegas e foi apresentada queixa à direção da escola.

A nível de tratamento, estão já definidas linhas orientadoras que apoiam a intervenção dos terapeutas. O objetivo comum às dependências é a redução/eliminação do comportamento problema e a “alimentação” de comportamentos saudáveis alternativos, que permitam às pessoas satisfazer as suas necessidades psicológicas. Apesar de ser um percurso difícil para todos os intervenientes, a satisfação com a recuperação do controlo sobre a própria vida é transversal a quem consegue recuperar da condição.

É inquestionável o impacto benéfico que a Internet tem nas nossas vidas. Mas, enquanto indivíduos pertencentes a uma sociedade, devemos permanentemente contemplar e refletir sobre as repercussões que estas experiências podem ter num espetro de utilização, do mais saudável ao prejudicial. Até porque, como alguém já referiu “a arma em si não é perigosa, mas sim quem a empunha”.

Se tivesse nascido há 13 anos, sei que haveria risco acrescido. E, caso corresse mal, haveria psicólogos a quem recorrer. Mas é importante perceber que a adição aos videojogos não é uma condição que melhore ou passe com o tempo. Se não for feita uma intervenção, atempada e precoce, o quadro clínico tende a agravar-se e a cristalizar-se ao longo do tempo, chegando a situações críticas de absentismos escolares de vários anos. Acompanho atualmente alguns casos de jovens que abandonaram a escola há vários anos e não concluíram a escolaridade obrigatória.

Infelizmente, um grande número de profissionais de saúde física e mental não estão ainda sensibilizados para estas problemáticas, sendo necessário investir na sua  formação, tornando-se sinalizadores de referência destes situações e podendo encaminhar para psicoterapia o mais cedo possível.

João Nuno Faria é psicólogo clínico, com uma pós-graduação em psicoterapia com crianças e jovens e formação complementar em adição aos videojogos, redes sociais e cyberbullying, sendo essa também uma área de interesse e investigação. É atualmente coordenador do Núcleo de Intervenção no Comportamento Online no centro clínico Pin –Partners in Neuroscience.

Fonte: Observador