«SapoLifestyle – Artigo opinião » “A raiva é a forma mais profunda de compaixão” – Dra. Tânia Costa, Psicóloga Clínica e da Saúde
Cheguei à sala de espera e pela expressão facial percebi logo que a M. estava com raiva. A consulta começou pela descrição dos acontecimentos associados a esta emoção. Depois de alguma descoberta guiada perguntei-lhe se pensava que a intenção da pessoa foi magoá-la.
O tom aumenta significativamente e os gritos no consultório expressam a forte intensidade da raiva. “Não quero saber da intenção! O que me importa são os resultados! O que interessa se a intenção é boa? Isso não muda o resultado final! Não existiu consideração por mim!”
“A raiva é a forma mais profunda de compaixão”, escreveu o poeta e filósofo David Whyte. Porém, temos tendência a dizer que a raiva é uma emoção má. Que as pessoas que sentem raiva são más e por isso não devemos senti-la. Muito menos expressá-la. No entanto, gostemos ou não, ela faz parte da nossa vida.
O que é a raiva?
É uma emoção básica que evoluiu para organizar o corpo no sentido de atacar ou defender. Tem-nos ajudado, ao longo de milhares de anos, a lidar com uma série de ameaças à nossa sobrevivência como sermos atacados, injustiçados, desrespeitados ou abusados.
Pode servir também para nos proteger da perda de pessoas, coisas ou objetivos importantes. Mostra ao outro que não estamos a gostar do seu comportamento ou que estão a passar determinados limites.
A utilidade da raiva
A raiva dá-nos energia e impulsiona-nos a ameaçar, atacar ou defender-nos daqueles que nos podem magoar, a nós ou aos outros (por exemplo, defender alguém que está a ser insultado). A raiva pode travar comportamentos desadequados dos outros. É como se fosse o combustível que prepara o corpo para a ação.
Move-nos a lutar pelos nossos direitos. Quem não sente raiva está em perigo de não se defender. Por esse motivo, a raiva é uma emoção útil e adaptativa.
Poderá a raiva ser prejudicial?
Todas as emoções fazem sentido e são legítimas. Não escolhemos senti-las e o problema habitualmente não está na emoção. Está sobretudo na forma como a podemos expressar. Além disso, a questão problemática da raiva relaciona-se com aquilo que estamos a interpretar.
Por exemplo, se acreditarmos que alguém nos está a tentar prejudicar, é natural que sintamos raiva. Todavia, quando nenhuma ameaça está a acontecer a raiva deixa de cumprir a sua função. Se uma ameaça esteve presente ela foi útil, mas se já estamos seguros e a raiva ainda está cá, ela deixa de cumprir o seu propósito. Isto acontece particularmente nas relações interpessoais e é sobre este tipo de raiva, associada ao ressentimento e à mágoa, que vos quero falar.
Efetivamente, quando alguém nos magoa, por vezes a raiva transforma-se em ressentimento e mágoa. Algumas pessoas podem sentir isto durantes anos. A raiva acaba por corroer, não aquele que magoou, mas a pessoa que a transporta.
Infelizmente algumas pessoas nem compreendem que são elas que se estão a queimar. É por isso que há quem diga que a raiva é como beber veneno e esperar que o outro morra.
Ficamos presos na raiva?
Ficamos presos na nossa cabeça. Quando sentimos raiva temos tendência a ter muitos pensamentos automáticos relacionados com o que nos irritou (“Isto não devia ter acontecido comigo. Isto foi injusto. Isto é inadmissível”) e reproduzimos repetidamente a situação na nossa mente. Ficamos agarrados aos nossos pensamentos e a raiva mantém-se. Podemos passar horas a ruminar.
Não largamos os pensamentos sobre o que a outra pessoa disse, o que dissemos ou gostaríamos de ter dito ou como podemos repor alguma injustiça que possa ter acontecido. O problema é que não nos conseguimos acalmar, porque o nosso sistema de ameaça permanece ativado quando já não há um perigo. Sofremos.
Como podemos lidar com a raiva?
Quando a raiva já não está a cumprir a sua função podemos começar por reconhecer que ela já não tem qualquer utilidade e ter conscientemente a intenção de a começar a largar. O primeiro passo para fazer isso é validá-la, ou seja, ter noção que ela faz ou fez sentido e não nos criticarmos por a sentirmos.
Podemos reconhecer o acontecimento, o comportamento ou a situação que nos perturbou, referindo para nós que é natural e totalmente legítimo que possamos sentir essa emoção. Podemos dizer mentalmente para nós que não há nada de errado com ela. Ela pode estar aqui, dentro de nós. Não há problema nenhum em sentirmos isso. Não a vamos criticar ou pressionar para ir embora. Podemos genuinamente legitimar a experiência de estarmos zangados, sem ficar agarrados ao que a mente comenta sobre a situação (o que foi certo, o que foi incorreto, o que foi injusto).
Estar agarrado à “ruminação raivosa” mantém a raiva. Podemos, em alternativa, ficar apenas a notar, com uma atitude curiosa e gentil, a emoção no corpo e as sensações que a acompanham, compreendendo que sentir raiva é estar em sofrimento. E, dentro do que conseguirmos, permitirmos que ela esteja presente dentro de nós.
Validar esta emoção implica compreender sabiamente que esta experiência resulta da ativação do nosso sistema de ameaça e que o nosso cérebro está apenas a tentar proteger-nos de um perigo. Não escolhemos a forma como o nosso cérebro funciona. É assim que ele responde a este tipo de ameaças. Não é culpa nossa. A raiva que sentimos não significa que somos más pessoas ou que os outros são maus. Significa apenas que o nosso sistema de ameaça foi ativado e isso pode dever-se a inúmeros motivos.
Na superfície, a raiva parece a única emoção que sentimos. No entanto, podem existir outros sentimentos atrás desta emoção. De forma mais profunda é importante vermos que outros sentimentos podem estar escondidos. Tristeza? Solidão? Medo? Vergonha? Quando identificarmos esse sentimento podemos nomeá-lo, de forma gentil e num tom de voz caloroso, da mesma maneira que falaríamos para um amigo chegado e querido.
Por exemplo, “Noto que está aqui medo”. Ou “É vergonha que sinto por trás da minha irritação”. É importante nos conectarmos com essa emoção e igualmente permitir que ela esteja dentro de nós. Também ela tem a sua função e nos comunica algo.
As emoções atrás da raiva habitualmente estão associadas a necessidades emocionais que não foram preenchidas. Por exemplo, não ser visto, ouvido, validado, reconhecido, suportado. No fundo, pode significar aquilo que mais queremos evitar como seres humanos: não sermos ou não nos sentirmos amados.
Então, a pergunta que se impõe a nós próprios é a seguinte: qual foi a verdadeira necessidade que não foi satisfeita? Desejava muito ser ouvido naquela situação? Sentir-me seguro? Estar conectado com a outra pessoa? Ser respeitado? Ser validado? Ser compreendido? Ser valorizado? Reconhecerem o meu esforço? Ser suportado? Ser apreciado? Ser visto? Tratado de forma especial? Sentir-me amado? Então, se descobrirmos essa necessidade que não foi preenchida, colocamos um nome a essa necessidade, com um tom amável. Por exemplo, “A minha necessidade era validação emocional”.
Todos somos dignos e merecedores de cuidado. Todos merecemos que as nossas necessidades emocionais sejam atendidas. Muitas vezes acreditamos que precisamos da mão do outro, da presença do outro para nos sentirmos bem. De facto, quando os outros são uma fonte eficaz de prestação de cuidados, isso ajuda-nos a lidar com as nossas emoções. Regulamos as nossas emoções na relação com os outros.
No entanto, nem sempre as pessoas suprimem as nossas necessidades, por diversas causas e motivos. Mesmo quando solicitamos eficazmente este tipo de pedidos ao outro, às vezes as pessoas não estão. Não dão. Não nos suportam. No entanto, nós podemos preencher estas necessidades. Este recurso está dentro de nós. É a nossa capacidade inata de sermos auto-compassivos. Podemos tocar diretamente a nossa necessidade, conectando-nos com ela e perguntando a nós próprios o que precisávamos de ouvir.
Se a nossa necessidade foi não sermos vistos, podemos dizer internamente “Eu estou aqui e vejo-te. Eu olho para ti. Ei interesso-me profundamente por ti”. Se descobrirmos que a nossa necessidade era sentirmo-nos conectados, podemos oferecer-nos um sorriso gentil e dizer, de forma auto-compassiva, “Eu estou aqui para ti, estou contigo. Não estás sozinho.”. Se a nossa necessidade era sentirmo-nos amados, podemos dizer “Eu gosto de ti. Eu amo-te muito e vou ajudar-te a preencher o buraco de quem não te deu amor”. Podemos oferecer a nós mesmos o que precisamos. Estas palavras, quando ditas de forma calorosa e gentil, sinalizando interesse, auto-compaixão e afeto, estimula o nosso sistema de segurança e tranquilização.
No final da consulta perguntei à M. quando passou a acreditar que a intenção das pessoas não era importante. Ainda a sofrer com a sua irritação contou-me que em criança às vezes ia para a cozinha preparar algo delicioso para oferecer à mãe. Estava verdadeiramente entusiasmada com a intenção de lhe poder oferecer um bolo, por exemplo.
No entanto, quando a mãe chegava a casa e notava a cozinha desarrumada, ralhava com ela. Criticava-a porque tinha desarrumado a cozinha toda e ficava em stress porque havia muita coisa para lavar e arrumar. A conclusão da M. foi a seguinte: “Não interessa a intenção porque ela não viu, só viu a desarrumação”.
Observei o sofrimento dela e no tom mais caloroso e validante que consegui respondi-lhe: “Lamento muito que a tua mãe não se tenha conectado com a tua intenção de dares. Oferecer algo ao outro é um gesto maravilhoso. Merecias ter ouvido o quão amorosa foste em dedicar o teu tempo a preparar algo delicioso. Merecias ser elogiada pela forma como expressaste o teu afeto. A arrumação não era mais importante que o teu amor.”
A raiva abranda. E as lágrimas mostram uma tristeza muito profunda. A tristeza de uma necessidade não preenchida.
Texto: Tânia Costa – Psicóloga Clínica e da Saúde – Consulta de Ansiedade e Coordenadora da Consulta de Perturbações da Personalidade