«SapoLifestyle – Artigo opinião » Será mesmo só preguiça e falta de vontade? Os típicos rótulos na PHDA: despistado, precipitado e tagarela (alguém?) – Dra. Marta Negrão
O Xavier tem 28 anos, trabalha num banco, vive com a Inês sua namorada, e mantém uma vida social ativa.
No trabalho é considerado esquecido, desorganizado e desatento. É habitual nunca entregar nada do que lhe é pedido no prazo definido, esquecer-se frequentemente de responder aos emails do chefe, demorar muito tempo numa tarefa ou deixá-la a meio, falar por cima dos colegas e do seu chefe, acumular muito trabalho acabando por passar noites sem fim a tentar terminar tudo e, no fim das reuniões, perguntar sobre assuntos que foram discutidos e decididos em reunião.
“Xavier não aguento, estou farta da tua desarrumação, és caótico e preguiçoso!”
Este é o tipo de discurso que ouve da namorada todas as semanas. Em casa, a Inês queixa-se constantemente de tudo aquilo que deixa espalhado pela sala (roupa, papéis do trabalho, taças de cereais), da loiça que deixa desarrumada e por lavar no balcão da cozinha e, no quarto, o caos não está instalado porque a Inês vai arrumando a roupa nos armários.
Ver um filme sossegadamente do início ao fim, é outra dificuldade. O Xavier parece que está sempre agitado, mexe as pernas e os pés e faz questão de comentar todas as cenas.
Os amigos, umas vezes riem-se, outras vezes chateiam-se. O Xavier é o “esquecido”, o “tagarela”, o “desleixado”, o “inconveniente”, o “não deixa ninguém falar” e o “eterno atrasado”. São vários os cafés, almoços e jantares que se esquece e, aqueles a que vai, chega no mínimo 40 minutos atrasado (provavelmente porque decidiu ir lavar o carro, por dentro e por fora, cinco minutos antes de ter que sair de casa).
Quando conversa, interrompe quem fala a todo o momento e então quando o assunto lhe interessa, não se cala. Outras vezes, sentem que “falam para o boneco”, porque o Xavier tem a cabeça na Lua. Para não falar das vezes em que consegue ser muito confuso nas conversas, saltando de tema em tema, a um ritmo que ninguém consegue acompanhar.
Mas de onde vem todo este repertório de comportamentos?
É falta de disciplina, força de vontade, não se importar com os outros? É imaturidade? É defeito de carácter? Apesar de quase todos aqueles que vão cruzando a vida do Xavier interpretarem estes comportamentos como tal, a resposta é outra.
O Xavier tem PHDA. Muitos torcem o nariz quando ouvem este nome, a outros soa familiar, mas ainda são poucos os que realmente sabem do que se trata.
Perturbação da Hiperatividade e Défice de Atenção, nome dado a uma condição biológica e crónica, que resulta em parte de um desequilíbrio de neurotransmissores no cérebro. É caracterizada pelos sintomas de desatenção, impulsividade e hiperatividade.
É uma perturbação que afeta o desenvolvimento das funções executivas, capacidades essas que nos permitem planear, focar a atenção, lembrar instruções e gerir várias tarefas.
A dificuldade do Xavier em regular e manter a atenção, explica os esquecimentos, a dificuldade em iniciar e permanecer numa tarefa até ao fim, os constantes atrasos, a desatenção nas reuniões e em conversas, o perder-se nos próprios pensamentos, a sobreposição de compromissos, a desarrumação, o tempo longo que necessita para realizar tarefas no trabalho, a distração fácil, e o tempo exagerado que perde com pormenores.
Na PHDA, não significa que não haja qualquer atenção, mas antes uma atenção desregulada
O Xavier não consegue focar- se em apenas um estímulo, mas acaba por dividir a sua atenção por vários estímulos “ao mesmo tempo”.
Já a dificuldade em regular e inibir o próprio comportamento, o que inclui também o seu discurso e pensamentos, explica a dificuldade em permanecer sentado (e calado!) a ver um filme, em manter-se quieto à mesa, em controlar o seu discurso, em dar espaço e escutar o outro, o constante terminar das frases dos outros e precipitar respostas antes de uma pergunta terminada, a atividade mental tão acelerada e constante, com pensamentos a saltar de uns para os outros à velocidade da luz, que torna tão difícil aos outros acompanharem o seu raciocínio.
Apesar de ninguém saber, estas dificuldades e rótulos que vai ouvindo (e interiorizando) desde muito novo, são causadores de um grande sofrimento. Apesar de ninguém suspeitar, o Xavier tenta e esforça-se por ser e fazer melhor, mas é tão difícil…
O que é que eu tenho de errado? Como é que me fui esquecer disto? Porque é que sou tão estúpido? Porque é que não sei estar calado? Porque é que não consigo fazer as coisas? São alguns dos pensamentos recorrentes que lhe passam pela cabeça.
O Xavier precisa de saber que as suas dificuldades são consequência de uma condição neurobiológica e que podem ser trabalhadas com ajuda farmacológica e psicoterapêutica.
Este caminho permitirá viver relações mais saudáveis, um trabalho onde é capaz de fazer valer as suas capacidades e ser bem-sucedido, uma vida mais organizada e funcional e um autoconceito mais verdadeiro e positivo.
Texto: Marta Negrão, Psicóloga